As Ruínas do Brasil

Triste fim. É triste ver um país inteiro que assiste quieto um golpe em que vão, em primeiro lugar, retirar as parcas conquistas dos miseráveis que alcançaram alguma qualidade de vida com programas de transferência de renda e moradia popular, hoje praticamente criminalizados sob o argumento de que se deve ensinar a pescar em vez de dar o peixe.

Depois serão os direitos dos trabalhadores assalariados, pagadores de impostos, estes sim, onde encontramos uma grande parte dos críticos aos programas de transferência de renda. Terão de ver seus direitos trabalhistas sendo retirados com a alegria dos patrões que ficam orgulhosos de ver um funcionário que trabalha com a mão direita enquanto come usando a mão esquerda para levar a comida até a boca porque coisas básicas como horários de almoço serão reduzidos, se não extintos junto com os direitos este que este governo ainda nos preservou como Fundo de Garantia, Seguro Desemprego, Férias Remuneradas, bem, e o próprio salário pago em dia. Trabalhadores de empresas privadas prestadoras de serviços públicos, como as que exploram o transporte nas regiões metropolitanas, além de verem a precarização do seu trabalho, quando acumulam funções como de motorista e cobrador, vão se adaptando aos cada vez mais comuns atrasos e parcelamentos de seus salários, tudo assim, sem o menor respeito. Ou você acha que o governo golpista vai fazer alguma coisa contra isso? Ou isso ainda não te afeta ou nunca te afetou?

Mas também não dá prazer algum ver a marginalização dos funcionários públicos tendo os salários parcelados em vários estados do Brasil, inclusive o Rio de Janeiro governado de cabo a rabo pelo PMDB de Eduardo Cunha, o líder dos comensais da morte que derrubam o governo eleito, sendo que faziam parte da mesma chapa que ganhou o pleito de 2014.

Não há motivo para festa quando as pessoas estão preocupadas com o preço da Coca Cola e não reparam que seus governantes, em solo municipal, fartam-se com a especulação imobiliária, recrudecem políticas públicas medievais em setores como o Sistema Único de Saúde, este sim sucateado e sendo lentamente entregue às mãos de corporações que se escondem sob o manto da invisibilidade de organizações sociais: os grandes laboratórios internacionais que fabricam medicamentos e chamam de placebo a inovação tecnológica da universidade brasileira que inventou a pílula do câncer. E a cara de pau do apresentador do Jornal Nacional ao dizer que a presidenta liberou para consumo um item cujos efeitos ainda não foram comprovados...

Eu não quero ver a máscara da direita caindo depois de chegarem e retomarem o poder com a chancela do Judiciário quando o conceito de moralidade que só não se aplica aos políticos poderosos e ricos milionários comerciantes e empresários, quando os pequenos passos conquistados na área dos direitos humanos também caírem por terra e reafirmarem a fraternidade de pilares machistas que regulam e normatizam o comportamento e lhe dizem quem, onde e quando você pode beijar, se você deve dar ou se deve comer e quando programas pioneiros de distribuição gratuita de remédios, com proibição da venda de medicamentos, para garantir a equidade de sua distribuição forem cortados, se não numa facada só, mas lentamente, num corte lento e profundo, segregando e higienizando a sociedade como se lavassem com água é sabão o que consideram sujeira ao olharem para bichas, putas e travestis, e quando as mulheres que desprezam a sororidade e desejam tombar sua maior representante tiverem seus direitos estuprados pela tradição do hétero adulto, de preferência branco, sempre no comando, recolocar a bunda na cadeira da presidência e rebolar sobre os direitos dos que têm coragem de chamar de minorias. Mulheres, por acaso, são minorias? Negros são minorias?

E quando virarem piada expressões que já são malditas como reforma agrária e reforma urbana, a última, praticamente desconhecida da maioria da população.

Não, eu não quero ver. Acho que vou fazer as malas. E nem dá mais para ir para Cuba. Ouvir Rolling Stones, se for conquista, eu já posso ouvir aqui. Mas sabe-se lá, de repente até isso passará a ser imoral. Em tempos que podem vir com a criminalização, não do fumante de crack ou de maconha, que já são criminalizados, mas quando um fumante de tabaco correr risco de ser preso.

Largos passos dados para trás e que não são para pegar impulso e empreender uma corrida. E cenas de prefeitos reformando avenidas sob pretexto de adequação à mobilidade urbana, gastando milhões nos calçamentos que servem na verdade somente de desculpa para reformar as caixas de operadoras de telefonia, energia elétrica e outros serviços, antigamente propriedade do Estado, e hoje entregues de vez às mãos de poderes privados a que interessam apenas o lucro obtido dos que ainda poderão pagar por comodidades como a TV a cabo, hoje uma das mais importantes plataformas para disseminação da cultura dos Estados Unidos (dá uma zapeada na Net e me diz o quanto ali é programação, nem vou dizer brasileira, mas de diversidade cultural) por meio de séries, filmes e os mais boçais tipos de programas e documentários que nada têm a nos ensinar ou nada têm a ver com nossas vidas. Ainda se estivéssemos falando da propagação de cultura brasileira, de programas educacionais. Nada disso. Daí essas empresas se juntam, montam seus cartéis e seu imposto é usado para pagar a reforma da avenida, que era para melhorar a vida, por exemplo, de cadeirantes, mas onde pessoas que andam com duas pernas seguem agora trôpegas nas caixinhas e tampas dos canos e cabos das operadoras.

Enfadonho é o discurso da parte da classe média que nem burguesia é, mas defende valores burgueses, pois não têm bens de produção, apenas de consumo. E estão pendurados no crédito que lhes levará com o tempo o dinheirinho que hoje ainda economizavam para viajar ou pagar a faculdade que não tinham podido terminar de fazer, pois tiveram de dar prioridade ao trabalho que no final do século passado já flertava com a flexibilização dos direitos do trabalhador.

Ai que saudade de quando cantávamos que “um outro mundo (e melhor) é possível, se a gente quiser”.

Hora de fazer as malas e levar as camisetas que sobraram no armário. A economia vai dar uma melhoradinha no início, mas depois virão os cortes, os ajustes e a população da favela, do morro, da quebrada, onde nem a senzala e nem a ditadura de fato acabaram, onde o chicote estrala e onde rola pipoco, pois lá, já cantaram Chico e Criolo, "escorre o sangue", vai ver o fim das farmácias populares, a subnotificação dos casos de violência contra a mulher, contra gays e travestis, contra as prostitutas que só conseguiram comprar casa ou só conseguem pagar os estudos com o dinheiro que obtiveram com a prestação de serviço em que usam aquilo de que são donas, seu próprio corpo.

Ah, a moralização das contas públicas. Desta eu duvido. Vai ser desfigurada. Folha de pagamentos não é tão importante. Bancos estatais devem mesmo emprestar dinheiro para empresas e cartéis internacionais. Emprestem dinheiro público para pagar a compra das empresas públicas e estatais. Daí a redução do número de funcionários do Metrô de São Paulo. Você já imaginou o caos e a queda de qualidade do que já é precário para muitos com os planos e programas de demissão voluntária, os velhos e, esses sim, malvados, PDVs.

E o golpe maior. O mergulho das irmãs estrangeiras do Ocidente nas reservas ainda nem exploradas de petróleo do Pré-Sal, entre outras, todas entregues às nada éticas Shell, Britsh Petroleum, Essos e Texacos da vida. A esta altura o velho oeste já será aqui e as hordas de panfletários que hoje vestem azul e amarelo vão assimilar na rua a cultura belicista do eurocentrismo emplacada com sucesso na América do Norte, agora aqui, sob o triste título de "novo cangaço", ultrajando até mesmo os velhos cangaceiros do século XX que não tinham nada de parecido com o que se vê hoje, exceto o ódio e crueldade em suas ações de reação à violência com que o capital e a sociedade industrial se reacomodam e vão jogando pelas bordas da banheira os que não lhes interessam e se transformaram em tribos nômades de verdadeiros walking deads a perambular pelas cidades a qualquer hora do dia ou da noite dispostos a qualquer coisa para manter sua brisa.

Mas fazer as malas e ir para onde? Para o Uruguai, para a Venezuela, para a Bolívia ou Equador? Chile, até, quem sabe? Refugiados da caretice dos sabores da Tea Party Caipira do século 21 que se estabelece sob o solo brasileiro. Ah, não vamos esquecer os índios. Falei aqui em reforma agrária, mas não falei dos índios. Como será que eles vão agir ou serão transformados em atrações turísticas em meia dúzia de parques de diversões, ops, quis dizer, parques nacionais, ou o que restou deles, onde vão praticar danças erótico-exóticas para alimentar a sede e a libido da família tradicional que vai fotografá-los para colocar no Instagran e dizer que, "nós, portadores de tablets e smartphones, também somos patriotas".

Não. Talvez o governo não pare de dispensar todos os remédios. Vai dar prozac (genérico) e rivotril (genérico). Fluoxetina de manhã, para o povo acordar e trabalhar - e de vez em quando alguém pirar e disparar umas metralhadoras - e o clonazepan para dormir à noite, no sofá mesmo, vendo a programação das mídias dominadas por uma outra meia-dúzia de famiglias. E nas crianças ritalina, para focarem e aprenderem mais matemática, química e física e trabalhar na firma, na indústria, já que disciplinas como história e geografia vão cada vez mais sendo relegadas a segundo, terceiro, quarto, último plano. Para que formar professores? Para que historiadores e geógrafos? Literatura? Não. Só gramática. Gramática do inglês cara-pálida!

É uma mudança de rumos sem precedentes depois de tanta esperança e perserverança depositadas numa santa chamada democracia. Santa usurpada e endemoniada, onde quem decide as coisas mesmo são os colégios eleitorais e onde conselhos populares e deliberativos de democracia direta terão cada vez menos poder em detrimento dos conselhões de política macroeconômica dominados por representantes da indústria.


Fazer as malas e ir para onde? Para a ponte, pular no rio ou sobre a rodovia? Matar-se? Não. A sua vida não lhe pertence. Pertence ao Estado e ele vai querer de você até o último centavo que render. Nem que seja para te colocar numa penitenciária onde você vai sustentar os fornecedores de quentinhas, as empreiteiras que vão construir cada vez mais presídios, para encarcerar também as crianças e adolescentes que deixaram de ir para escola, porque a merenda acabou (o dinheiro foi roubado), porque não tem professor, porque não tem passe livre ou simples e puramente porque a escola fechou.

Mas escola não se fecha sozinha, não é? Tem que ir alguém cortar a luz, o telefone, a água, a conexão de internet, de TV a cabo, que eram usadas para a educação pública. Ou você achou que eu estava falando de professor de matemática em escolas municipais e estaduais? Não. Escola paga. Por quem tem grana. Aí sim as escolas públicas vão virar não local de arregimentação de traficantes, meu caro, mas as próprias biqueiras, pois vão virar ruínas. Como tudo mais. Exceto nos condomínios residenciais, empresariais e comerciais, com cercas elétricas e segurança privada para conter a entrada dos que chegam das ruínas. Pois tudo serão ruínas. Só ruínas. Ruínas.

Eli Fernandes

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